domingo, 10 de setembro de 2023

CONTINÊNCIA À VERSEJANDO! 40 ANOS DA POESIA DO MAJOR WILSON PORTO


Por: Carlos Alberto Cavalcanti
Texto escrito em 2021

Três depoimentos sobre o Major: “O ‘Major’ Wilson Pôrto, meu velho, é uma dessas figuras do povo em que, felizmente, as qualidades sobrepujam os defeitos [...] falar do poeta ‘Maior’ Wilson Pôrto, meu velho, é tocar-lhe a vida” (Ivan W. Porto, no prefácio de VERSEJANDO, 1981, p. 3). “Lembro do meu pai [...] tinha espírito de luta [...] possuía conhecimentos invulgares para quem não frequentara curso regular de educação. [...] Era um autodidata em tudo, o ofício de dentista aprendera por si mesmo, vendo o tio Edmundo trabalhando” (Giovanni Porto, em ESTAÇÃO DAS LEMBRANÇAS, 2000, p. 124). William Porto registra em A Casa do Major (BAÚ DE ARCOVERDE, 1986, p. 13) que seu pai “consertava e ajeitava tudo”, referindo-se a dentes ou dentaduras (chapas) dos que iam ao gabinete dentário em sua casa na Antônio Japiassu, 370. “Só tinha um defeito” – assegura - “não sabia cobrar”. Daí – diz William – o livro de fiado era da espessura de uma Bíblia.

A casa do Major, no endereço já citado, era uma espécie de sala de visitas da cidade. Todos tinham acesso, seja para dar um jeito nos cacos de dentes ou alinhar uma chapa para melhor morder o pão de cada dia, seja para uma conversa animada sobre fatos políticos da cidade e do mundo, pois o Major, com seu velho rádio, conseguia ouvir transmissões de emissoras estrangeiras e, não obstante a chiadeira da sintonia, sempre estava a par das notícias mais novas. Na verdade, duas chiadeiras se ouviam na Casa do Major: a do rádio e a da asma de William. Era uma internacional e outra municipal. 

Em Rio Branco e, depois, Arcoverde, a influência positiva do Major para a vida comunitária, com seu jeito tolerante e pacífico de exercer sua liderança, atraiu a ira de setores truculentos e despreparados que, no clima hostil e ditatorial vigente no País dos anos 60 do século XX, chegaram a invadir as dependências de sua casa, traumatizando as crianças com a desproporção da abordagem desrespeitosa, inclusive, para com a Sra. Almira, esposa do Major, a única voz adulta, naquele momento, a defender a família diante daquela situação de terror. 

Tal ocorrência, contudo, não arrefeceu a conduta de um homem de fibra, sertanejo calejado pelas lutas e tatuado pela marca da honradez. Como haveriam de calar a voz, justo de quem sabia lidar com a boca e tinha força, de fato, para arrancar os dentes se fosse preciso... É sobre esse Major, apaixonado pelos ideais que abraçou, capaz de materializar, através da poesia, o lirismo que pulsava em seu coração que registramos essas palavras para lembrar um detalhe talvez pouco divulgado de sua inteligência multifacetada: a veia poética.

Vale ressaltar que, com relação ao soneto: AUTOCRÍTICA (p. 55), onde o poeta se refere “aos pobres versos” e diz que não passa de um “rabiscador” e se diz “mau versejador [...] carente de engenho, inspiração”, há que se entender que talvez queira se referir ao fato de que seja praticamente um autodidata. Mas esse detalhe não embaça a arte introjetada em sua capacidade de leitura de mundo e fundamentada também em leituras de livros. Dois outros pedrenses, só para citar a prata de casa, os poetas Ulisses Diniz e José Firmo Cavalcante, também se encaixam nesse critério do autodidatismo, e igualmente são dois vates de reconhecido valor pelos poemas publicados e aclamados pela crítica acadêmica. 

Assim, o nosso querido e saudoso Major Wilson Pôrto se enquadra nesse crivo de poeta e foi oportuno e necessário que os filhos cuidassem da reunião desse material no livro que, aparentemente magrinho, é avantajado no valor dos 104 versos impressos, dos quais, 87 são sonetos que contêm valor estético e estilístico. Vamos, então, ver alguns títulos inseridos no livro VERSEJANDO que está a merecer uma edição mais arrojada (essa foi, digamos, doméstica).

MINHA TERRA (p. 5) recordação da terra natal: Pedra, cidade onde nasceu o Major Wilson Pôrto e uma terra de bons poetas aqui já referidos: Ulisses Diniz e José Firmo Cavalcante, logo no limiar do século XX. Sobre Arcoverde, habitação seguinte do poeta Wilson Porto, há três sonetos referenciais: ARCOVERDE (p. 6), NATAL EM ARCOVERDE (p. 26) e JAPIASSU (p. 40); a cidade de Pesqueira também é tema em dois sonetos: PESQUEIRA (p. 6) e ÊXTASE (p. 29); e o Brasil aparece em dois sonetos: BRASIL (p. 7) e ACORDA BRASIL (p. 22). 

A maioria dos poemas em decassílabos distribuídos em dois quartetos e dois tercetos, como rezava a prática do soneto tradicionalmente adotada pelos poetas nacionais.

A temática da seca aparece no soneto: 1932 (p. 8), A SECA (p. 8), O SERTÃO E O SERTANEJO (p. 9), FLAGELADOS I e II (p. 10), OS POBRES (p. 11), onde o poeta alcança um tom reflexivo-descritivo que nos reporta aos romances regionalistas que tratam desse tema. Sua habilidade de concisão constrói imagens fortes e tocantes num espaço curto do poema de 14 versos. Pelo menos em dois desses sonetos, o Major Wilson faz uso da aliteração, repetição consonântica na construção vocabular do poema, como ocorre com FLAGELADOS II (p. 11), ao repetir a consoante “F” e OS POBRES (p. 11), ao repetir a consoante “P”. O soneto INVERNO SERTANEJO (p. 12) vem aliviar a temática das misérias trazidas pela seca, pois aqui ele descreve a alegria e os benefícios da chuva para a terra sertaneja.

No tocante à História Geral, o Major Wilson dedicou alguns sonetos, a exemplo de: ECOS DA REVOLUÇÃO FRANCESA (p. 12), NOVA CHINA (p. 13), PORTUGAL (p. 75), ANO INTERNACIONAL DA MULHER – 1975 (p. 24), texto em que o poeta reitera a iniciativa tomada pelas Nações Unidas de celebrar o Dia Internacional da Mulher. Antes, duas datas já haviam posto em pauta a discussão sobre a mulher na sociedade. Foi em 1911, nos EUA, quando de um grave incêndio em uma fábrica, cujo saldo trágico foi a morte de 125 mulheres; e em 1917, na Rússia, 15 mil mulheres marcharam pelas ruas para expressar o descontentamento com a situação humilhante da mulher na vida comunitária.

Com um perfil biográfico, há um soneto sobre o Papa João XXIII: ANGELO RONCALLI (p. 14), OS ROSEMBERGS (p. 15), JUSTIÇA IANQUE (p. 15). Nesses textos, o poeta levanta sua voz isenta, tanto quando tece elogio ao líder religioso, a quem considera uma “alma lúcida, serena e majestosa”, tanto quando discorda, nos outros dois sonetos, da visão reducionista do poder americano, seja no julgamento dos Rosembergs (eles foram executados sumariamente sob a acusação de vazar informações para a Rússia), seja na execução do Chessman (o Bandido da Luz Vermelha), condenado por uma série de crimes ainda não devidamente esclarecidos.

Os sonetos: UM GÊNIO (p.18), uma referência a Josef Stalin, liderança política da Rússia e TRAIÇÃO (p. 19), dedicado a Luiz Carlos Prestes, trazem a afirmação das preferências políticas do autor que continua a temática com: A POLÍTICA (p. 19) e CAMPANHA POLÍTICA (p. 20), incluindo, em seguida, o tema do desarmamento com os sonetos: OS HOMENS DO PENTÁGONO (p. 16), O PAÍS DA BOMBA (p. 18) e no poema: PERIGO ATÔMICO (p. 17). 

A veia poética do Major Wilson se eleva ainda mais em quatro sonetos antológicos. Em um deles, MAGDÁ (p. 28), o poeta Wilson Porto faz alusão a Magdá, do romance de Aluísio de Azevedo: O HOMEM. A obra foi objeto de crítica quando do seu lançamento, pois há uma abordagem naturalista sobre aspectos da personalidade da protagonista que, para a época, tais aspectos pareciam camuflar um tom de erotismo exacerbado para um romance. O Major consegue, com brevidade e talento literário, sintetizar o episódio em 14 versos. Os outros três destacam-se pelo tom satírico do texto.

Em dois deles [ELE DISSE (p. 24)] e [ELA MAGOADA REPLICOU (p. 25)] o poeta simula uma peleja entre um suposto casal, onde o eu lírico masculino destrata o elemento feminino a quem se refere e, em seguida, o eu lírico feminino responde cabalmente ao dito interlocutor machista. Um artifício que lembra aqueles desaforos do Boca do Inferno, o poeta Gregório de Matos, quando, com ironia e humor, deitava e rolava suas críticas no cenário barroco nacional.

Há ainda outro soneto: A VINGANÇA DO CURA (p. 25) em que o poeta explora sua veia humorística ao narrar um episódio envolvendo um pároco num breve incidente em viagem. Com muita habilidade verbal, o poeta faz que o padre, ao se refazer do susto do incidente, se dirija ao condutor do coletivo com o uso popular de FDP...

Como não poderia deixar de ser, o lado sentimental do poeta para com a família que formou, amou e defendeu até os últimos dias, há textos que merecem uma leitura também sentimental, posto que reminiscências pessoais são confidenciadas abertamente ao leitor: SONETO (ao pai e à mãe) (p. 39, 40); MEU PRIMEIRO VERSO (p. 5) e RESIGNAÇÃO (41) dedicados a Lena (esposa), CONSELHO AOS FILHOS (p. 38), Poema para Lena (filha) (p. 45).

Aí está, sobretudo para os leitores da atualidade, um registro da trajetória extraordinária de um conterrâneo pedrense, cujo legado de valor humanístico e literário vem enriquecer as páginas de qualquer registro histórico-biográfico que se queira construir para compor a lista de obras regionais de valor inestimável para a vida literária do Brasil.

0 comments:

Postar um comentário